“Topografias Intermitentes”
Artistas: Beto Shwafaty, Carolina Zancolli, Mariana Sissia, Marcelo Moscheta, Renata de Bonis, Renata Padovan, Santiago Porter, Sol Pochat e Samuel Lasso
Curadoria: Thais Gouveia
Período expositivo:
4 de março a 8 de abril de 2017 – Hilo Galeria (Buenos Aires)
13 de maio a 8 de julho de 2017 – Casa Nova (São Paulo)
“Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais.” (Félix Guattari)
“Let us remain exposed, and let us think about what is happening to us.” (Jean Luc Nancy)
Segundo o químico holandês Paul Crutzen (ganhador do Nobel em 1995 por seus estudos sobre a camada de ozônio) estamos entrando em uma nova era geológica: a Era do Antropoceno, em que humanos e suas intensas transformações técnico-científicas substituíram a natureza como a força ambiental dominante na Terra. Pesquisadores têm encontrado diversos indícios para comprovar essa afirmação: o aumento da temperatura do planeta em um 1ºC, a modificação permanente dos cursos de rios de todas as bacias hidrográficas do mundo, as perfurações terrestres de poços de petróleo e a destruição em massa de reservas florestais são apenas alguns deles.
A presente exposição propõe estudar formas com que o pensamento ecológico e político despontou poeticamente em obras de nove artistas da Argentina e do Brasil. Dando prioridade aos aspectos universais desse tema, a proposta é abrir caminho para que o conjunto traga uma compreensão poética acerca das transformações ambientais decorrentes de nosso atual modo de conceber a realidade, o que o filósofo francês Gilles Lipovetsky definiu como “cultura-mundo”. Esse termo refere-se a uma disseminação virtual em escala global de uma série de práticas e modos de vida como a extrema fé na Ciência, a dominação tecnológica da natureza, a miragem de um progresso ilimitado, a lógica do mercado, o hiperindividualismo, o consumo e as hipermídias.
Um processo que gerou uma miríade de problemas como os inúmeros desastres ambientais, extinções em massa, as crises econômicas, guerras, armas nucleares, grandes migrações, o aumento do nacionalismo e o subsequente fechamento das fronteiras. Quando os meios de comunicação e o ciberespaço se convertem nos mediadores primordiais de nossa relação com o mundo, o que se instala é uma ilusória ausência de limites, um imediatismo e grande distanciamento da realidade material finita gerando desorientação e até negação da vida em si, e seus estágios naturais de início, meio e fim (1). Esse distanciamento dos fenômenos locais em prol de apreender a escala global, fez com que nem conseguíssemos atingir essa concepção mundial e nem evoluir em nossa percepção de nosso entorno e do outro.
“A mental illness has invaded the planet, it is banality” (Yornel J. Mártinez Elías)
O que falta então para reintegrar as intensidades ecológicas e geográficas à prática artística, científica, etnográfica, econômica e filosófica? Um ponto de partida, segundo o filósofo e estudioso Félix Guattari, seria revisar as ecologias sociais que também passam por sérias deteriorações. Há uma crise na subjetividade – seja ela social, animal ou vegetal – e a subsequente perda de sua textura com o meio e de qualquer alteridade. A saída dessa crise, segundo o pensador, seria elevar as reflexões para além da perspectiva tecnocrática sendo a articulação estético-ético-política entre meio ambiente, relações sociais e subjetividade humana – que ele nomeou de “ecosofia” – a chave para reintegrar de forma mais profunda todos esses aspectos. (2)
Poderia a arte desempenhar um papel atuante na reversão dessas crises? Como transformar passividade em ativismo e reintegrar a ação artística aos fluxos naturais? Não se trata aqui de pensar a arte como geradora de soluções para os danos ambientais, senão como uma prática que pode – ao atuar no limiar e nas frestas das coisas e das percepções individuais – oferecer novos pontos de vista e assim transformar nosso modo de pensar e produzir conhecimento. Rancière defende que “a existência de acontecimentos que excedem o pensável clama por uma arte que testemunhe o impensável (3).”
Segundo esse último, seria próprio da arte inscrever em nossa compreensão o rastro desse impensável, essas camadas de mundo possíveis que ainda não conseguimos conceber, “fazendo-nos ver” cartografias até então invisíveis. Um “fazer ver” que age aqui sob a vontade artística de se apropriar dessa paisagem e que, inevitavelmente, precisa operar dentro de uma redução e descontinuidade dessa paisagem-mundo. E é exatamente essa vontade artística – através de decalques, desenhos, tintas, dobras, medições cronológicas e geometrias – que irrompe no espaço novas formações topográficas. E, talvez, novas geografias dentro daqueles que as veem.
A exposição é o resultado de uma residência curatorial de dois meses que a curadoria fez em Buenos Aires em 2016, como parte de C.Lab Prêmio Mercosul.
Agradecimentos: Hilo Galeria, Blau Projects, Galeria Luisa Strina, Galeria BFA Boatos, Galeria Vermelho e Rolf Art.
Referências bibliográficas
(1) LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
(2) GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Tradução de Maria Cristina F. Bittencourt. 11 ed. Campinas: Papirus, 2001.
(3) RANCIÈRE, Jacques. O Destino das Imagens. Tradução de Mônica Costa Neto. São Paulo: Contraponto, 2012.
Artistas:
Beto Shwafaty
Projeções (Planos em Progresso) X, 2017, chapa de compensado, pantógrafo e tinta óleo, 85 x 112 x 8 cm
Apresentando um pantógrafo (régua usada para ampliar ou diminuir desenhos) e parte de sua superfície coberta de tinta a óleo preta em referência ao petróleo, o presente trabalho é uma ação metafórica do artista que evoca as abstrações envolvidas nas projeções econômicas, ecológicas e sociais bem como as promessas desenvolvimentistas relacionadas à exploração do petróleo. A forma geométrica, por sua vez, alude à estética do Concretismo brasileiro, que surgiu como parte de um emblema de modernização nacional, símbolo do progresso (ou do retrocesso).
Carolina Zanolli
Legado Ancestral, 2016, impressão sore vidro e base de cimento, 30 x 20 x 42 cm
Fragmentos da história familiar da artista se apresentam aqui através das paisagens serranas de Córdoba, na Argentina. A escultura, de forte rigor técnico, cria um diálogo formal e arquitetônico dentro da relação homem-natureza, ao unir impressões fotográficas de pedras em seu contexto natural apoiada por uma base de concreto. O uso de vidro como suporte cria uma permeabilidade entre o trabalho e o espaço ao redor.
Marcelo Moscheta
Timelapse, 2013, gravação em laser e terra do deserto do Atacama, 13 x 13 cm
A pequena caixa com terra, areia e pedras recolhidas no deserto de Atacama ao lado de uma placa que indica o tempo em que estiveram os primeiros habitantes da região, traduz o gesto do artista em guardar a memória deste território. A obra faz referência à placa cravada pelos primeiros astronautas em sua chegada à Lua e ao mesmo tempo estabelece um vínculo entre passado e futuro e com os astrônomos que habitam a região do Atacama devido ao importante centro de observação astronômica ALMA (Atacama Large Millimeter/submillimeter Array). Mas aqui há uma inversão dos pontos de vista: enquanto aqueles se dedicam à observação dos fenômenos cósmicos, o artista se volta para a Terra.
Série Positivo Singular, 2016, fotografia e colagem (corrosão sobre ferro e impressão fotográfica com tinta pigmentada mineral sobre papel Hahnemühle Fine Art Museum Etching 350 gr), 113,5 x 113,5 x 5 cm
Parte de uma série de dez fotografias de paisagens inóspitas do deserto chileno coladas com folhas de metal, Positivo Singular convoca o monolito do filme 2001, de Stanley Kubrick. No filme de 1968, o volume negro de material indefinido simbolizava o sincronismo entre o passado e o futuro, como um anúncio atemporal acerca do destino do pioneirismo humano. No entanto, no trabalho de Moscheta, esse monolito, ao apresentar-se sujeito à corrosão e oxidação devido à sua composição ferrosa, surge apenas como simples evidência dessa passagem do tempo e também inverte o sentido daquele usado por Kubrick: em vez de lançar o homem ao progresso do futuro, seu destino será a decadência.
Mariana Sissia
Mental Landscape XXVIII, 2016, grafite sobre papel, 43 x 31 cm
Mental Landscape XXX, 2016, grafite sobre papel, 78,5 x 56,5 cm
Os desenhos de Sissia são abstrações orgânicas desenvolvidas a partir de uma tentativa de apropriar-se da paisagem universal, reduzindo-a a um nível inteligível. Para este trabalho, o artista usou a frottage, técnica topográfica usada na arqueologia para a reprodução de texturas, para “mapear”, com o uso de grafite, a superfície de um mosaico. A textura obtida, semelhante a uma rocha, cria tanto uma relação entre a imagem e a sua materialidade, como uma ambiguidade em relação à realidade (natural ou artificial) do objeto mapeado.
Renata de Bonis
Big bang bang baang bang bang-bang, 2015, conchas marinhas cheias com chumbo e cimento e caixa de ovos feita de cimento resinado, dimensões variáveis
As conchas espalhadas pelo chão do espaço transforma-o numa paisagem permeável, convidando o visitante a aproximar-se e examiná-las com atenção. Em olhar atento, nota-se que estas estão preenchidas com cimento, material usado na construção civil, que imprime qualidades arquitetônicas a essas formações calcárias. Ao preencher seus espaços vazios, a artista bloqueia, aos ouvidos humanos, a capacidade sonora das conchas de ressoar o quebrar das ondas na praia. A caixa de ovos, também de cimento, reformula o conjunto a partir de uma abordagem metafísica criando em torno da obra uma atmosfera de quietude e melancolia.
Renata Padovan
Escape Routes, 2016, acrílico, dimensões variáveis (cada linha possui 60 cm aprox.)
Fronteiras e zonas conflituosas fazem parte da pesquisa investigativa de Padovan há dez anos. A presente instalação traz linhas de acrílico vermelho correspondentes aos desenhos de algumas fronteiras atravessadas atualmente por milhares de refugiados e emigrantes ilegais pelo mundo, incluindo países como Síria e Coreia do Norte. Essas pessoas são forçadas a fugir de seus próprios países devido a diversos fatores conflitantes: regimes totalitários, guerra, fome, perseguição política e religiosa, entre muitos outros. A obra é resultado de uma pesquisa que a artista realizou durante uma residência artística na Coreia do Sul, em 2016.
Da série “Dangerous Borders”, 2016, aço carbono cromado, medidas variáveis (cada linha possui 35 cm)
A série Dangerous Borders é composta por dezoito esculturas de metal cujos desenhos correspondem a linhas de fronteiras geopolíticas conflitantes, consideradas as mais perigosas do mundo. Sete delas compõem esta instalação: Índia/Paquistão, China/Coreia do Norte, Chad/Sudão, Afeganistão/Paquistão, Coreia do Sul/Norte, Estados Unidos/México e Isreal/Síria. Mesmo sendo difícil realizar um levantamento preciso do número de mortes nessas regiões devido à omissão desses dados pelos respectivos governos, a artista criou a presente seleção, em 2016, com base no elevado número de ocorrências de disputas territoriais, rivalidades históricas, tráfico de pessoas, drogas e armas nessas regiões. Os tamanhos das linhas foram igualados livremente e não correspondem às escalas reais.
Samuel Lasso
Circunvalar, 2017, instalação com terra e grafite, medidas variáveis (80 x 70 aprox.)
O trabalho consiste em um traçado de grafite sobre a parede junto a seis mostruários de terras recolhidas em diferentes regiões da Colômbia, como prova de uma viagem que o artista realizou pela rodovia Circunvalar, seguindo os passos de Simón Bolívar em sua luta pela libertação daquele país. A memória de um povo em luta e o sangue de seus mortos integram a memória dessa terra que agora recolhe Samuel para relatar, em um sussurro, a relação entre território e sociedade, geografia e história.
Santiago Porter
Monteros, da série Bruma (terceira parte), 2014, fotografia e impressão jato de tinta, 60 x 72 cm
Sem título (caderno de artista), 2015, aquarela e acrílico sobre papel, 25 x 38 cm
Sem título, 2016, óleo sobre madeira, 36 x 27 cm
As obras integram a série Bruma – Fotografías de la Argentina ó de una posible relación entre el aspecto de las cosas y su historia. A série começou em 2007 – à qual o caderno e a pintura pertencem – e a terceira parte em 2012, que compreende a fotografia. Para realizar essa última parte, o artista viajou pela Argentina para registrar paisagens cuja fisionomia foi transformada por decisões políticas e econômicas. Monteros é uma vila na província de Tucumán, onde se iniciou, em 1975, a Operação Independência, considerada o primeiro grande precedente que inaugurou o terrorismo de Estado na Argentina. Na fotografia desta cidade, o que se vê é um campo após a queima canavial, uma prática que reduz custos, mas gera enormes danos ambientais.
Sol Porchat
Da série Vacios Naturales, 2017, fotografia digital sobre papel de aquarela 310 gr, 20 x 26 cm cada
Para a realização dessa série, a artista fotografou diferentes cascas de árvores nativas e pedras na região de Santa Cruz, na Argentina. As imagens geradas foram depois manipuladas digitalmente, tendo suas transparências modificadas. Em seguida, essas imagens foram impressas sobre um papel rugoso de 310 gr que, por sua vez, ressoa a textura orgânica original daqueles elementos. Neste processo, o que se investiga são os alcances poéticos e sensitivos relacionados à transmutação da matéria no momento em que a artista eleva a solidez bruta da árvore e da pedra a um estado de quase evanescência, ao dobrar sua rigidez numa espécie de ciclo etéreo e infinito do próprio papel.