“FARDO MOLE, PENCA RAMA” Alexandre Brandão

“FARDO MOLE, PENCA RAMA” Alexandre Brandão
zweiarts

“FARDO MOLE, PENCA RAMA”

Individual Alexandre Brandão
Texto crítico Miguel Chaia

Exposição de 1 Março à 13 Abril 2024

 

NOS ENTRECRUZAMENTOS DA ARTE

Miguel Chaia

 

ALEXANDRE BRANDÃO – NOS ENTRECRUZAMENTOS DA ARTE
Miguel Chaia

Os trabalhos do artista Alexandre Brandão – inclusive aqueles agora apresentados na Galeria Casanova – contém e afirmam as características que embasam a sua concepção de arte e o seu modo de produzir as obras. Estas especificidades do fazer artístico de Brandão podem ser percebidas em três dimensões que se misturam para formarem as bases de uma poética sistemática e reflexiva no manuseio de suportes, técnicas e materiais: são elas a multiplicidade, a simultaneidade e experimentação.
1.Multiplicidade – o artista se utiliza das mais diferentes linguagens, preferencialmente a escultura ou tridimensional, sem deixar de incursionar pelo desenho, vídeo, arte postal e específicas formas de pintura ao lidar com as bordas deste suporte. Certas estratégias de produção das obras exigem o esforço corporal, a lentidão e a persistência da espera para se obter os resultados desejados – uma performance demorada. Um bom exemplo é o rito performático para cobrir com musgos dois grandes vasos de cimento cuja técnica inclui terra, cimento, argila, musgo desidratado e base de ferro (Bulbo, 2023).
Recorrer a múltiplas possibilidades é algo estrutural no fazer de Brandão, por isso a seleção, a escolha de materiais e suas propriedades recebem a atenção e o esforço do artista. Entretanto, face a tantas opções de matéria prima, o raciocínio procura dar sentido à diversidade, almejando uma unidade formal. Assim, Brandão se locomove entre as farturas dadas pela natureza e os restos industriais deixados pela superprodução capitalista que gera descartes de mercadorias. Da natureza, Brandão recolhe a terra bruta, seus pigmentos, sua textura; se interessa pela vegetação nas mais diferentes formas como folhas, musgos, frutos, sementes; coleta a água, líquido valorado em si mesmo ou para misturar elementos. E, como um bom mineiro de BH, é atraído pelos minérios – suas qualidades e beleza. O uso dos mais diferentes metais, nas suas diferentes formas, faz Borges transitar entre natural e o industrial; entre o cultural e o tecnológico; entre o perecível e o permanente; entre o etéreo e o pesado. Assim, os trabalhos de Brandão podem ter por base a água e a terra; a luz e o ferro; a folha e o tecido; o vidro e o cimento; a fruta e a linha de costura; argila expandida e arame; …
Esta determinação dos metais na trajetória de Brandão encontra um correlato em outro mineiro, Carlos Drummond de Andrade, que marca a sua poesia também pela insistência em entender e criticar a mineração em Minas Gerais. Como se entendeu e escreveu Drummond (e, talvez como se vê o artista Brandão) no poema Confidência do Itabirano: “…Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. / Noventa por cento de ferro nas calçadas. / Oitenta por cento de ferro nas almas…”. Drummond desdobra-se nas artes plásticas no artista Amílcar de Castro.
A presença constante destes materiais naturais e industriais em Brandão será determinante para o artista aproximar arte e ciência, ao necessitar entender e realizar experiências químicas e físicas.
2.Simultaneidade – essas três dimensões básicas estão interligadas. Assim, a simultaneidade no uso de múltiplos materiais na mesma obra é um aspecto marcante em Brandão, levando o artista a manipular, na mesma obra, diferentes matérias como metal/luz, cimento/produtos orgânicos, sumo de frutos/tecido de algodão…
Em paralelo a este processo diversificado, o artista se utiliza de várias formas de conhecimento ou saber para estruturar uma obra. Para tanto, ele recorre aos princípios da física, da química e até da biologia no seu fazer artístico. Há em Brandão um esforço para buscar soluções nas relações entre arte e ciência, e aproximações com a alquimia.
Por tais aspectos, coexistem em alguns trabalhos de Brandão o visível e o invisível, o permanente e o transitório. Um bom exemplo é o processo para obter obra Rama (2024) que na sua produção leva suco de limão, reagindo sobre tecido de algodão em função da alta temperatura emitida por um ferro de passar roupa.
3.Experimentação – imbricada com as dimensões anteriores, destaca-se sob vários aspectos a experimentação como um fundamento da prática artística de Brandão, uma vez que indica a importância da atividade manual na sua forma de produzir arte. Destaca-se, desta forma, algumas particularidades deste artista: o manuseio sistemático com as mãos para controlar a matéria prima que ergue a obra; o esforço ativo para reordenação dos materiais e a descoberta das melhores relações entre diversas matérias e fenômenos; e o estabelecimento de critérios ou compreensão de associações conceituais que imprimem outro significado ao resultado final.
Em resumo, pode-se entender que Brandão, em cada realização de uma obra, gera um processo com diferentes fases (sem garantia de sucesso de cada uma delas) que incluem observação, classificação, pesquisa das características de coisas da natureza e do mundo urbano-industrial e muitas experimentações. Trata-se de um processo pessoal e subjetivo, associado a critérios factuais de se apropriar das coisas do mundo – próprio da arte.
Neste contexto, o tempo (e espaço) torna-se uma categoria relevante no fazer artístico de Brandão – principalmente porque o artista torna-se dependente das propriedades dos materiais, das reações científicas, dos fracassos e novas tentativas de acertos e outras formas de manipulação dos materiais.
Brandão age no entrecruzamento de possibilidades e de tempos. Além do mais, ele traz em alguns trabalhos o registro tempos passados ao arquivar e desenhar percursos que executou em espaços geográficos – é o caso de Volta (NYC), de 2014, arte postal utilizada para ele enviar a si próprio as suas andanças por cidades.

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A exposição “FARDO MOLE, PENCA RAMA”, na Galeria Casanova, conta com quatro trabalhos que explicitam as concepções e os procedimentos da arte de Brandão, tendo por base o fazer manual e as três dimensões explicitadas anteriormente (de imediato pode-se perceber no título da mostra criado por Brandão um aceno à literatura do mineiro Guimarães Rosa).

FARDO, ferro e arame recozido, 2024.
Uma obra resultante de um agrupamento de vergalhões de ferro utilizados para armações que estruturam as construções, coletados no espaço urbano onde foram descartados. Com estes vergalhões o artista cria feixes unidos cada qual pela pressão de rodas de arame recozido. Neste díptico há uma transmutação da ideia original de feixes de galhos utilizados no meio rural ou na roça para fazer fogo e obter a alimentação para uma ideia de recolher e organizar os restos de carcaças de edificações que se desfazem nos grandes centros urbanos. Porém, a poética da forma original é tão universal que se mantém mesmo nas condições de ressignificação dos descartes.
A apropriação de sucatas dá início a um processo de criação que envolve a rememoração, a avaliação comparativa de situações opostas e a necessidade de o tempo agir sobre o arame para melhor se relacionar com a pele ferrosa dos vergalhões – com o auxílio de alguma reação química. E, assim, a madeira sofre simbolicamente um processo de transmutação para o ferro – no mundo atual, acompanhando Drummond, até a natureza é oitenta por cento ferro.

MOLE, massa de vidraceiro pigmentada com pó de carvão e argila em pó, 2024.
Três frágeis e grandes placas de vidro encontradas em depósitos de descarte de material tornam-se os suportes para intervenções com faixas estreitas e coloridas feitas com massa de vidraceiro. O vidro já carrega marcas do tempo percebidas na película fina da poeira impregnada na superfície e nos finos riscos que desenham ao acaso registros do longo passado. Nestes campos com histórias próprias, Brandão desenha ou escreve a sua saga pessoal.
O artista, após vários testes em menor escala, vai enrolando estreitas ‘minhocas” da técnica de cerâmica com a massa de vidraceiro já tingida por pigmentos de carvão ou com outros pigmentos esverdeado ou amarelado, utilizados para dar uma cor única a cada trabalho. Assim, pressionando e achatando os rolinhos, vai construindo caminhos/itinerários sinuosos e labirínticos produzindo imagens embaralhadas, sobrepostas e em várias direções sem a segurança de ir e vir. Os vidros recebem escritas sugerindo mapas de labirintos que devemos desvendar.
Nesta obra de imediato sobressaem as faixas que remetem ao desenho, porém as linhas se tornam volumes, os volumes tendem à tridimensionalidade, a matéria porta cores. Aqui, Brandão embaralha linguagens, pois na mesma obra se encontram a pintura, o desenho e a escultura. Mole não é o suporte, mas a matéria manuseada, domada pela ação manual que vai tecendo longos caminhos de cores monocromáticas, criando movimentos, luzes, sombras e relevos. Convivem em Mole a transparência do vidro (que deixa passar a luz) e a opacidade da massa escultórica/pictórica (que retem a luz). Em cada centímetro destas faixas se percebe a presença corporal do artista, uma vez que as digitais, as marcas da pressão dos dedos, ficaram registradas na massa no esforço para dar direção ao fluxo do material utilizado.
Neste trabalho, o liso suporte vidro acolhe a multiplicidade e a simultaneidade, pois nele é difícil definir as fronteiras entre desenho, pintura, objeto tridimensional e processo.

PENCA, argila expandida e arame recozido, 2023.
No mesmo raciocínio de Fardo, fica explicitado o modo de Brandão trazer a multiplicidade e a simultaneidade para dar expressão ao coletivo ou ao agrupamento, uma vez que Penca emula um cacho de cocos que nasce no topo dos coqueiros. E, também aí se percebe as reminiscências do mundo rural. Ou melhor dizendo, da natureza. Pode-se observar que Brandão está constantemente realizando um movimento pendular entre mundo rural e mundo urbano-industrial; entre natureza e cultura.
Galhos, folhas e frutos estão ostensivamente presentes nestes quatro trabalhos da exposição como referências para conceber e estruturar os trabalhos, num processo de ressignificação (crítica e estética) da natureza. Assim como os meios para tal produção também sejam buscados nas mutações que é próprio do mundo natural, biológico, químico ou físico.
Vale destacar, agora, um trabalho que Brandão vem se desenvolvendo ao longo dos anos, na forma de experimento artístico acompanhado sistematicamente – uma obra em processo. Trata-se de Temporã, iniciada em 2014, que ainda hoje é retomada pelo artista, composta por uma sequência circular de jabuticabas reunidas com linha de costura. O artista produziu um colar com estas frutas, medindo cerca de 10 centímetros de diâmetro, aparentando uma joia de grandes pérolas pretas, sendo que cada fruto se encontra em específico momento de amadurecimento/apodrecimento. Cada fruto em estágio de definhamento ou em um instante de resistência. Há dez anos percebe-se neste trabalho tanto a natureza lutando contra o tempo, quanto a arte acolhendo reações botânicas vitais.
Penca, foi exposto durante 2023 nos jardins do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), no parque do Ibirapuera, e agora é deslocado para um cubo branco, em um processo equivalente a sair da natureza para um ambiente cultural. Trata-se de trabalho que dada a sua concepção consegue transitar de ambientes, por portar uma potência de simultaneidade. Antes, Penca estava alongado na grama; agora se encontra exposto no cimento. Este fenômeno é correlato ao modo de fazer de Brandão: retornar à natureza pela artificialidade da arte e da tecnologia que permitem expandir a argila e possibilitam a existência, seja em circunstâncias naturais ou em situações artificiais.

RAMA, suco de limão sobre tecido de algodão cru, aquecido com ferro de passar, 2024.
Este trabalho é composto por quase duas dezenas de tecidos recortados a partir das matrizes de grandes folhas colhidas na floresta, de uma mesma família de vegetação e em estado de conservação específico a cada uma – uma inteiras, outras em pedaços ou partes devido a ação do tempo. As diferentes etapas das condições das folhas as deixam completas ou em fragmentos, perfazendo um conjunto de diferentes formas criadas a partir da vegetação. E, assim, após a coleta e seleção, cada uma destas unidades se torna uma matriz para recorte no tecido de algodão, mantendo as marcas da sua deterioração natural (aspecto que relembra a obra Temporã). Estes recortes em tecido serão umedecidos com suco de limão e aquecidos com ferro de passar roupa, em um processo químico anteriormente pesquisado e aceito pelo artista

PS: Alexandre Brandão insiste em percorrer os caminhos da arte para retornar ao caldo primordial, pois percebeu que a unidade foi perdida. Esse artista vasculha a sua memória para materializar as sensações do ambiente mineiro onde a natureza é relevante, tanto que as pessoas são “oitenta por cento de ferro”. Com tais referências, Brandão, utilizando-se de recursos manual e intelectual e faz experimentações para recompor a coesão inicial. Ele quer, com a arte, reconectar natureza e cultura, arte e alquimia/ciência e as diferentes linguagens. Recolher partes dispersas e juntar estes pedaços – reordenando materiais, unindo tempos e buscando a coexistência das multiplicidades da realidade.

São Paulo, fevereiro de 2024

Miguel Chaia é mestre e doutor em Sociologia pela USP. Professor de Política no Curso de Ciências Sociais e no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP. Pesquisador e coordenador do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política (Neamp). Autor de artigos e livros sobre filosofia política e arte brasileira.