Incidente. Bernardo Glogowski

Incidente. Bernardo Glogowski
zweiarts
A Casanova inaugura  dia 15 de Dezembro, a mostra “Incidente”, individual do artista paulistano Bernardo Glogowski, que contempla um conjunto de pinturas inéditas produzidas no último ano.
Em paralelo, a editora 55SP lança a edição “Série KAL007”, criada especialmente para a mostra.
Nessa edição, o artista utilizou papéis antigos confeccionados por seu avô e desenvolveu um processo único de impressão de uma mesma imagem sequencial.
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Do inevitável

Esta série de pinturas de Bernardo Glogowski trabalha na ordem do que nos retorna como estranho, por meio de um olhar como que fixado em um momento que, em suspensão, se configura previamente ao evento traumático. De um plano acima, como de uma guarita, o que nos aterroriza nos olha de volta, de cima de sua condição intransponível. Alguém poderia dizer que por trás de cada das imagens há uma história, ou antes, um recorte particular de uma narrativa histórica.

Mas aqui talvez não haja muito que se possa vislumbrar “por trás” da imagem. A pintura, enquanto pensamento gestado pela ação, respeita e até assevera a condição de superficialidade das imagens, que apesar de remeterem a acontecimentos anteriores, não os ilustram, nem informam sobre as peculiaridades de cada evento.

Apenas indicam que algo da ordem do terrífico atravessou o destino destas figuras, reconfigurou estas cenas. Algo de inevitável, embora não por acidente.

Transmutadas pelo véu de uma superfície lavada, que desbota o que poderia haver ali de uma sedução primária, ou brilho fácil, as imagens são reveladas pela pintura em sua intenção inicial de alienação, sua vocação para um esvaziamento telúrico, sombrio.

A ação da pintura, metodicamente e sem gestos grandiloquentes, devolve corpo às contradições inerentes a todo o processo, quase sempre meio apagadas, mas prontas para reagir a qualquer faísca de atenção. Assim, a faixa que cobre o rosto por razões curativas também é mortalha (as deusas da beleza e da guerra trabalham em conluio). Os sapatos retirados dos mortos em campos de concentração também circulam pelas revistas, e garrafas carregam a promessa de festa, como também de envenenamento.

Estão aí como um celuloide achado no porão de um passado familiar, em que ainda vivem as provas das adesões convenientes, os indícios das pequenas torturas cheias de significado civilizatório, as provas cabais do que tivemos de soterrar para seguir rumo a um futuro passado a limpo.

Já não se distingue, na tatuagem feita a força, o sinal de pertencimento da marca indelével de uma maldição: o tratamento pictórico não se firma nesse dado, apenas aponta o ocorrido ao rosto que nos evita como uma condição que nos escapa e nos aterroriza. Ficamos às margens de um estado sombrio que se externa aos poucos, e que se anuncia antes que seja possível reagir. Na borda deste espaço denso hesitamos em entrar, com boas razões.

 

Gilberto Mariotti